quarta-feira, janeiro 31, 2007

Um fado, pois então

se afinal tu não és minha
não deixas de ser quimera
lá por estar fundo na mina
o minério é bem o que era

os sentimentos profundos
não morrem com a primavera
pois moram dentro da minha
ambição que sempre espera

e eu em todos os segundos
amanso esta severa
dor que me faz diminutos
os minutos desta guerra

ao ver que só me pertenço
e só nisso tenho arte
sinto sofrer um pretenso
coração que em mim se parte

coração que só resguardo
nas profundezas de mim
na lava com que me ardo
no ardor de ser assim

como vês pouco mudei
continuo insatisfeito
porque sempre cá guardei
as dores dentro do meu peito

se afinal tu não és minha
serás ilusão: dá jeito
a quem urde uma escarninha
canção de amor e defeito



(Agosto 2003)

Outra espécie de fado

folha branca folha branca
lá me vou eu afogar
naquela angústia tão grande
de quem mal sabe esperar

passei por lugares obscuros
nesta crise dos quarenta
vi-me cercado de muros
sufoquei: bebi magenta

perdi-me de minhas rimas
minhas rimas me perderam
a culpa foi das neblinas
que comigo se entenderam

e quando quis regressar
à folha branca leal
(minha cama? meu altar?
não: é mais o meu estendal)

já só me senti obtuso
muito triste muito trôpego
vi-me como um parafuso
enroscado mas no lodo

e agora sim eu regresso
mas não venho como vinha:
venho com vinho perverso
e zangado com a vidinha

folha branca folha branca
eu cá me vou afogando
numa angústia assim tão branda
de quem só pode ir esperando



(Março 2004)

segunda-feira, janeiro 29, 2007

Sabem porque é que o nosso mal não tem emenda? É porque vem de longe...

da roma antiga ficou-nos a língua
e (são outros que o dizem, não sou eu)
o que é direito mas torto nasceu.

ficou-nos também esta coisa amiga
de querer ser patrício se é plebeu
e morrer rico quem pobre nasceu.

(morrer rico é a boa condição:
de vestes casa e carro, não de pão.)

terça-feira, janeiro 23, 2007

Maçã

a vida é uma eterna maçã
que cada um de nós há-de comer
até ao fim ou até onde der
para trincar: a vida não é vã

existe da maçã o eterno bicho
que à vida chega primeiro que nós.
enojados desse tal bicho atroz
atiramos a maçã para o lixo

sábado, janeiro 20, 2007

Ascensão e queda de Afonso Gallo, versão 2003

estava eu
affonso posto em sossego
apareceu
aquela a quem não me nego

e olhou
para mim com olhos tais
que mudou
meus pensamentos gerais

penso agora
só nela em particular
noite fora
aqui e em qualquer lugar

já não leio
já não escrevo ou medito
só anseio
resolver este conflito

ela ri-se
quando lhe conto piadas
já lhe disse
que não tenho namoradas

estou doente
da paixão já não me livro
fico ausente
meus amigos me acham esquivo

outras vezes
dizem que estou mui contente
faço teses
sobre o amor: já estou demente

fumo imenso
mas já não bebo assim tanto
entristeço
se não vejo o meu encanto

muitos dias
não lhe ponho em cima a vista
são as minhas
crises de ciúme autista

mas por fim
consegui voltar a vê-la
ai de mim
já maldigo minha estrela

afinal
diz ela que não me olhava
muito mal
fiz eu em crer nessa parva

já desisto
de aturar os seus caprichos
não resisto
volto a conviver com os bichos

não faz mal
pois já estou habituado
em geral
a este meu triste fado

isto é
só uma frustração mais
eu até
já voltei a ler jornais

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Pérfida variação sobre um dos melhores sonetos de Bocage

já pela densa noite adormecendo
e sangrando as palavras costumadas
dilacerado ébrio nas arcadas
de uma cidade onde morre lento

já pelos becos torpes se perdendo
batendo sempre a portas já fechadas
do frio se abrigando em folhas pardas
debaixo do céu do seu desalento

assim vivendo em guerra só consigo
por não concretizar seu sonho nobre
(mas bem sabendo desculpar o mundo)

ainda assim à vida chama um figo
pois sua liberdade embora pobre
é o tesouro do bom: do vagabundo.

quinta-feira, janeiro 18, 2007

MALDITA ENDORFINA (uma singela homenagem ao magnum branco)

comi agora mesmo um chocolate
pra compensar hormonas que o meu corpo
há muito não produz. mas foi bem pouco
o doce. e assim me deu pró disparate

de tamanho quilate. ai estou tão tenso
que fico verde só de imaginar
(e quase me apetece vomitar)
a preocupação com que já penso:

maldita endorfina, em mim assaz
faltosa, e rabugenta quando há,
eu quero, eu te reclamo, anda cá
(só eu sei bem a falta que me faz...).

estarei da endorfina dependente?
finjo que o sou, pois me sinto acossado
por atribulações do meu passado:
a luz dos olhos que me faz diferente.

porque uso deste doce, se o não uso?
"transforma-se o amador na cousa amada"
(isto era uma piada. e privada.)
não vou explicar melhor: seria abuso.


(maio 2003)

segunda-feira, janeiro 15, 2007

Soneto portalegrense

em portalegre sê portalegrense
embora tal não possas nunca ser.
chegaste agora mas vais entender:
portalegrense é só quem o merece.

não digas nunca mal: nada parece
melhor do que aqui há. aqui viver
é raro privilégio: qualquer ser
que aqui venha poisar cá adormece.

é esta a melhor terra deste mundo
e de um outro qualquer. se a isto aderes
podes ficar: aqui a gente é boa.

mas se renegas isto és vagabundo
ser neste burgo amado tal não esperes
e faz como eles: vai para lisboa.

(Este poema, de 2003, foi escrito depois de uma experiência portalegrense que tive, cerca de 2 anos antes. Se as coisas agora já não forem assim por aquelas bandas, desculpai-me, ó gentes!...)

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Cinco quadras alienadas

josé cobaia leitão
filho de antónio sarmento
não há quem lhe dê a mão
fogem dele, o azarento

não há mal que lhe não venha
não há amor que o proteja
escarnecem, fazem-lhe sanha
não lhe dão pão, dão-lhe inveja

tanto a condição humana
despreza um seu igual?
dor tão grande, dor tamanha
no mundo nada lhe vale?

mas na elipse do destino
(seja lá isso o que for...)
ele tem o seu domínio
que aos outros causa pavor:

cobaia leitão é louco
faz versos como ninguém.
gozam com ele? acha pouco:
leitão está já no além.

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Sentindo-se o autor pouco inspirado, tentou ainda assim escrever um soneto, e saiu isto

eu também luto contra meus gigantes
também me descaminho por caminhos
vernáculos secretos e sombrios:
também sou devedor ao mundo de antes.

enrolo-me em silêncios irritantes
e peço por favor toquem sininhos
para tentar quebrar estes tão frios
silêncios (outra vez) deseperantes.

ah! que não há um raio que te parta
poeta ou seja o que for: pereceu
a tua inspiração nessa gravata.

enforcas-te num gesto que perdeu
o jeito tempo e porra até a nata
da tua intuição: o que era teu.

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Soneto expectante

quero pairar por cima do sentir
ser da urbana febre um jornal.
será isto um amor universal:
relatar o desejo e não agir?

será amor em flor mas não porvir
e é de outros amores um maior mal.
não dá fruto: apenas o sinal
promessa do que nunca há-de vir.

mas isto é de um momento oscilação
do pensamento: não sei se é assim
ser só um espectador da vã razão.

eu guardo esta incerteza para mim.
às vezes desalento-me: que não
(mas logo um anjo atento diz que sim).

NADA

um precioso movimento mas que é falso
ensaiado ao milímetro a rigor
uma encenação da dor um estertor
um trazer a chaga ao peito e vir descalço

aí como se oferecesse ao cadafalso
um pactuar constantemente com o torpor
e um silêncio agora só em dó menor
um baixar de olhos pra mostrar embaraço

e largar dos olhos lágrimas nutridas
uma flor conscientemente desfolhada
como se estivesse desfolhando vidas

e então cantar uma canção mais magoada
que diz serem isto experiências sofridas:
eis o que podia ser muito e não é nada.