terça-feira, fevereiro 27, 2007

Affonso Gallo esperando sentado

à espera de quem
nunca mais amei
aguardo também
que o tempo me traga
ainda que vaga
uma nova lei:

a lei da verdade
do merecimento
ainda que tarde
que seja afinal
o final real
do meu sofrimento

é isso que aguardo
aqui na esplanada:
aguardo sentado
a ver uns de pé
a beber café
outros limonada

que vida lixada

Um muito arrevezado fado (ou a mesma variação, mas sobre outro tema)

eu não sou peão:
agarro-me à estrada
cansada da vida.
já não sei quem são
numa despedida
os males desta praga

no meu coração:
eis o que me estraga
a minha ferida.
pedes-me perdão:
estás arrependida?
ah! que deus te traga

sua solidão
e sua matraca
mil vezes bendita.
isto porque eu não
encontro saída
(minha grande vaca)

da estrada da vida.

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

O poeta, em seu recôndito abrigo, tentando desenferrujar sua máquina de fazer rimas, porém debalde

mas que grande chatice! não consigo
compôr mais que duas frases inteiras
e mesmo assim com algumas asneiras
e sempre a falar só do meu umbigo.

se penso que algo digo, sou ambíguo;
sinto a cabeça cheia? de varejeiras
(bem feito, pra não ter tantas peneiras...)
ah, que muito me sou meu inimigo!

e penso já que sou sá de miranda!?...
cuidado ó gallo que isso está bem mal:
esse teu intelecto já não anda

e nem mesmo desanda. é natural
que tenhas de remendar tua manta
fazer-te à vida, cair na real.

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Ataque de esquizofrenia cultural no terminal rodoviário de Cacilhas

à espera de transporte pró seixal
num microcosmos de cervejaria
tou vendo a emissão lá da bahia
("imagina o brasil sem carnaval") *

enredo-me neste reino animal
sonetando a ventura de hoje em dia:
a estamparia cultural que é minha.
isto assim não está bem. mas não faz mal:

aqui num portugal de pequeninos
eu não olho pró lado: já bastavam
as grandes porcarias que os meninos

sempre fazem na lama em que se encharcam.
são muito europeus: são sibilinos
e se mais mud houvera lá chegaram.



* (pergunta retórica de Daniela Mercury
em entrevista à TV Record, emitida em Portugal a 16 Fevereiro 2007)

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Indo o autor com um amigo pela estrada da vida, pediu-lhe opinião sobre seus amores tão delicados

já pelo verde prado que apenas
existe numa óptica poética
no silogismo firme e na métrica
mas nunca nos teus olhos de helenas

tocava o tocador suas avenas
chorava o poeta sua ética
sofrias tu de fome anoréctica
e eu pasmava já de tantas cenas.

foi então que pedi ao viajante
que comigo sulcava o prado raso
opinião palpite dica oráculo.

afirmo (respondeu esse pedante)
ser este muito estranho e raro caso
mas eu para profeta sou bem fraco

(Junho 2003)

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Poema autoantiecológico

eu vivo nesta floresta de enredos
perdido para mal dos meus pecados
do qual o mor é não saber olhar
em ti mais do que esse teu olhar.
eu já me dei às parcas e aos fados
mas eles não me querem aceitar
eu já bebi na fonte dos enganos
e ali bebi durante muitos anos.
e satirizo sempre os meus medos:
eu sou aquele que abre à tormenta
um peito alcatroado e sempre intenta
decifrar o que de amor são infectos
venenos tais como nitrofuranos.

por isso não são os meus versos ledos
por isso meus humores são mais pesados
metais que contaminam este ar
dos poemas em que já não sei nadar.
e hoje sei que estão contaminados
a floresta e as fontes por tiranos
poetas tais como eu. fossem putedos
ou fossem antes brincar na placenta
da terra: desagregariam lenta
e mais naturalmente estes dejectos
poéticos que ainda duram anos.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Um Prometeu de Lisboa

que querem deuses de mim
mais que a vida que vos dei
o fogo que devolvi
e a esperança que larguei?

que querem deuses de mim?
eu que nada mais serei
nem demo nem querubim
que retribuição darei?

que mais seiva? que mais dor?
mais alento? mais pobreza?
que querem deuses de mim?

eu queimei-me em meu fulgor
recusei-me à minha mesa
só tenho meu próprio fim.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Sejamos razoáveis

com quantas folhas brancas se destrói
uma floresta que mesmo não virgem
reclama muito mais da sua origem
que os ais com que o poeta se condói?

com quantos versos nunca se constrói
o adiado enunciar duma vertigem
(que todos os que escrevem nunca atingem?)
se porventura o bicho em ti te mói

e continua sempre a ratar
a placidez austera do teu fado;
se não desistes mesmo de rimar

os teus litros de pranto derramado
e o oh tão permanente teu mal-estar:
ao menos usa papel reciclado.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Lembrando-se o autor que deixou seus livros e seus manuscritos na cave de uma igreja em Portalegre

a minha cultura dita geral
guardei numa cave cheia de ratos:
estão pois os meus saberes escoltados
por uma sábia trupe animal

tão sábia tão voraz tão genial
que (se acaso não foram apanhados)
são hoje alguns dos ratos mais literatos
que habitam território nacional.

e quanto a isto eu não tenho ilusões
mas mesmo assim não me apresento queixa
que muito mais que eu penou camões.

um livro lhe roubaram? oh que inveja!
os meus ainda hoje dão sermões
aos ratos lá na cave de uma igreja.