terça-feira, março 27, 2007

Soneto para ursos

não pares: deixa ir o desvario
das lágrimas que o mar irão salgar.
é esse o sal dos olhos, o penar
na tristeza do inverno, duro e frio.

mas por força de lei, fatal natura
teu amargo hibernar acaba agora:
não pares, pois chegou a nova hora
vai ao pote de mel, o amor perdura.

e enquanto o doce alimentar o cio
não te quaixes, ursinho, a vida é breve
(dois dias de alegria, outro de azar)

balouça, brinca a prumo nesse fio
arvora-te no ar, de ânimo leve;
inspira, bebe, deixa de pensar.


Publicado em Debaixo do Bulcão poezine
número 5 - Almada, Setembro 1997

quinta-feira, março 22, 2007

Conversa

já estavam no café todos os tais
de um grupo que à conversa se entrega.
faltava affonso: e eis que ele chega
e senta-se num canto a ler jornais.

isso não parece bem aos demais
que logo lhe dão de conversa achega:
então affonso essa vida vai negra
ou são só os problemas habituais?

mas affonso não pega na conversa
pois ele só queria mesmo ler.
os outros perguntaram só pra ver

se ele falava. não falou. conversam.
e quando não há nada pra dizer
dizem que talvez vá ou não chover.



Agosto 2003
Publicado em Debaixo do Bulcão poezine
número 23 - Almada, Dezembro 2003

terça-feira, março 20, 2007

O tempo já não é o que era

primavera primavera
quem te deu e quem te dera
cai o lírio cai a lírica
chovem flores chovem cores
corre sangue corre hormona
vive vida vive vida
é tempo de renascer
primavera primavera
sempre igual sempre quimera
verdadeira verdadeira
quem te deu e quem te dera
passarinhos passarinhos
agora fazem os ninhos
sol bravio sol bravio
promete antes do estio
melanoma melanoma
primavera primavera
era linda já não era
(fico a ver o céu a arder)


Publicado em Debaixo do Bulcão poezine
número 29 - Almada, Março de 2007

quinta-feira, março 15, 2007

Soneto para ler daqui a alguns anos

que o teu desassossego seja um ovo
da cobra mais mordaz que existir
e que essa tua cria possa vir
a germinar na terra um gérmen novo

eis o que eu mais desejo e mais aprovo
e mais prevejo e sinto-me a sentir
sentado ainda no chão por florir
que é arena em que eu próprio desovo.

mas é outro meu ovo: excremento
que talvez fertilize mas não morde
(o teu irá trincar o desalento).

por isso é meu vento meu tormento:
sei bem que antes que a cobra em ti acorde
o parto da palavra é duro e lento.

(Outubro 2003)

segunda-feira, março 12, 2007

Morde-te de inveja, ó Shakespeare!

ofélia serafina da fonseca
que a comparassem à outra não quis
pois essa personagem infeliz
não tem nem mesmo um hamlet (pois que a nega)

e esta é ofélia "mas não cega":
é muito emancipada (ela o diz)
entre a palma dos pés e a raiz
dos cabelos (e a palma das mãos, que é seca).

ofélia serafina sabe bem
fazer-se à vida: faz-se a tempo inteiro
e nunca deixa intrometer-se quem

lhe predestina um lugar prateleiro
na sociedade do tem ou não tem.
ofélia sabe bem ganhar dinheiro!

Alegoricofilia

num tempo flutuante ruminava
um navegante pasmado de abismos
e quanto mais pasmava mais se achava
perdido no istmo dos snobismos

sexta-feira, março 09, 2007

Pérolas a porcos

eu já sou um errante: deambulo
por essas avenidas à boleia
dos sopetões da vida
e quase nunca encontro o que procuro.
tenho portanto uma vida bem cheia
de mágoa confundida
ou diremos então de vinho amargo
ou diremos então de um fero e largo
à tragédia poética serviço.
diremos tudo isso
que o mesmo é não dizer já quase nada.
também não é preciso
pois aquilo que sou já todos sabem:
aquele que bebe álcool ou que escreve
que escreve quando bebe
(só mesmo quando bebe)
que só sabe fazer bem asneirada
que anda endividado e que não paga
que leva tudo a sério e não conversa
que não tem namoradas
que não tem jeito para engatar gajas
que não tem jeito mesmo para nada
mas que ainda se atreve
mesmo àqueles a quem dinheiro deve
a pedir sempre a todos que lhe paguem
ainda mais um copo
já depois de ter bebido não pouco
(de resto não sabe fazer mais nada).

provado está que tão bem me conhecem
(e eu não os desdigo
pois é a maioria deste povo
e a maioria tem sempre razão)
não tenho então mais nada a acrescentar.
se não lhes posso dar o que merecem
tu lhes darás canção
o elogio ao deles grande umbigo:
vocês são mesmo bons! grandes artistas!
muito melhores que eu
que ando a procurar e que persigo
obter algo de bom algo de novo
e nunca tal consigo:
despisto-me sempre das minhas pistas.
não sou como vocês: ando a falhar
sou mesmo pouco astuto
sou um poço de inépcia devoluto.
às vezes ainda tento
mas falta-me o talento.
sou fraco sou palhaço sou ridículo
ando curvado tenho os olhos tortos
não me desembaraço
e tudo isto que faço
é como deitar pérolas a porcos.

segunda-feira, março 05, 2007

Faz o que eu digo

se não queres ser mais um poeta faminto
não vistas então do poeta a pele
que embora faça furor num recinto
de assustados carneiros (redondel
de néscios: é o que digo e não minto)
não te dará maná ou leite ou mel.
e esquece lá o néctar: o absinto
está caro (eu cá prefiro moscatel).

quinta-feira, março 01, 2007

Um pequenino rimance

num local da cidade cujo nome
não me apetece agora recordar
esquizofrenico poeta desenhava
retratos infantis da sua fome:
passava dia e noite a definhar
e quanto mais escrevia mais calava.

noutro recanto hábil da cidade
sonhava dulcineia o seu amor
mas o poeta só escrevinhava.
dulcineia já pesada de idade
fazia da paciência um lavor:
esperava e esperava e esperava.

mas sabe o povo que quem muito espera
ao desespero se entrega. dulcineia
(embora quem muito ama muito resista)
abriu um dia a jaula à sua fera:
por fim lá se esqueceu da antiga ideia
e a beja foi casar com um camionista.

sobre essa educativa e frágil estória
agora muito tempo se passou.
e embora o tal poeta ainda more
no mesmo beco triste e sem glória
não fez mais versos desde que lhe entrou
em casa o corvo que diz never more.