segunda-feira, abril 30, 2007

Consulta de psiquiatria

senhor professor doutor
veja lá se faz favor
porque me sinto tão triste:
que coisa em mim desistiu
a favor da que persiste
no meu âmago sombrio
e que é da dor um fio
tão fino que mal se viu
e já quase se partiu.

meu professor catedrático
por favor seja simpático
meu desvario organize
porque estou mui desvairado.
não deixe que eu agonize
no caos que em mim se instalou.
devolva-me quem eu sou:
o meu eu civilizado
dócil e bem comportado.

meu amigo e confidente
doutor: não seja prudente.
tome lá medidas drásticas:
mate esta esquizofrenia.
minhas conexões sarcásticas
se for preciso electrize.
faça tudo o que precise
mas livre-me da mania
de querer escrever poesia.

sexta-feira, abril 27, 2007

Soneto de até nunca

meu cântico de ócio e enxofre
meu búzio de buzina a buzinar
meu salmo mal sangrado insalubre
meu trémulo tremor atrapalhar

teu sério sinistrado sopro morno
teu véu tua vertente teu velar
teu pássaro passado ou teu choro
teu cisne teu segredo teu sugar

de tudo a vida faz nobres enganos
poetas versejai rogai por nós
recolhei este choro no altar

da santidade são simples os danos
adeus pai mãe tios adeus a vós
aqui vou eu a nado: a nadar

Publicado em Debaixo do Bulcão poezine
número 11 - Almada, Dezembro 1998

terça-feira, abril 17, 2007

Dos perigos dificuldades e glórias de ser poeta actual

um poeta extraordinário
desses que revolucionam
o que é seu e o seu contrário
fez grandes versos que soam
no mundo tal trovoada:
e de tanto ribombar
nessa alarve gente parda
que só sabe argumentar
sentada à mesa da tasca
tornou-se grande figura
conhecido até no alasca
(diz ele em sua finura)
e é apontado na rua
onde mora e onde tarda
e onde por ser crua e dura
levou cargas de porrada.
não faz mal (diz o poeta
num dos aforismos seus)
que as feridas de um profeta
não são chagas: são troféus.

sexta-feira, abril 13, 2007

Recriminação do poeta contra si próprio

E assi, de enleada, a esperança
Se satisfaz co bem que não alcança

(Camões)


se aquilo que se espera é mudança
esperar é ir morrendo já em vida
porque não basta ficar sempre à espera:
mais necessário é correr o risco
de mudar. o contrário é sofrida
resignação: é culto da quimera.
eu espero e portanto não arrisco
quando arriscar devia: desespero
sempre que me deixo enrolar num mero
esperar por uma esperança mais tardia
que é já esperança em mim embora frouxa.
e assim de enleada a esperança
se satisfaz com o bem que não alcança.
sabe porém que é uma esperança coxa
que assim se satisfaz. e não devia.


(Poema do Gallo, em Julho de 2003)

terça-feira, abril 10, 2007

O longo e árduo caminho para a união europeia

vinte e dois maravedis
(uma conta feita à pressa)
nas mãos de velhos senis:
só a eles lhes interessa

cento e trinta e oito bestas
às costas de um grande exército:
vão comemorar nas festas
sua glória e seu mérito

quatrocentos milhões de euros
numa conta de estadista
(que ele não o faz por menos):
eis sua honesta conquista


Publicado em Debaixo do Bulcão poezine
número 25 - Almada, Abril 2004