quinta-feira, maio 17, 2007

De Morfeu seu humilde escravo

eu já não amo tanto as madrugadas
que me deram de choro e de rir
já me dou mais à noite a dormir
não me apego em silêncio a horas pardas.

conforto-me em leituras ensonadas
(sonolento exercício do devir):
soletro até morfeu me distrair
e em mim espetar (perverso) sonhos-farpas.

abandonei a devoção da noite
alegre e rigorosamente estulta.
agora tenho um nicho em que me acoite:

é uma região de gente adulta
que aderiu à religião do açoite
e nos campos de morfeu já labuta.

terça-feira, maio 15, 2007

Meditação esforçada sobre um poema barroco

A minha bela ingrata
Cabelos de ouro tem, fronte de prata.
De bronze o coração, de aço o peito

Jerónimo Baía



sempre que leio os poetas barrocos
muito me agrado com seus bons ofícios
à língua portuguesa: artifícios
que brilham de beleza, embora ocos
por vezes. outros poetas (bem poucos)
também souberam criticar os vícios
do excesso de palavra: tais indícios
enunciavam já outros rebocos
da grande construção da poesia.
pois sendo assim que posso eu dizer
hoje num verso que mal te retrata?
dizer que a minha amada em fantasia
também (soubera eu escarnecer)
cabelos de ouro tem, fronte de prata?

e se és assim ingrata quanto bela
será que posso ainda acrescentar
que é de pedra fria o teu olhar?
(ou maldizer a minha triste estrela
por tanto a desejar e por não tê-la?)
pode um poeta hodierno delirar
e em em rimas esforçadas delinear
poemas ofuscantes numa cela?
será mal necessário entender
talvez que a poesia é uma torrente
que não regressa nunca ao mesmo leito
mesmo que eu tenha para tal de ter
(aparte o trocadilho e o parco enfeite)
de bronze o coração, de aço o peito.

(e embora não consiga
dizer de cor a cor
dos versos que desdigo
quando não digo nada
e sempre me persiga
a aura desse amor
eis pois o que dedico
à minha bela ingrata:
cabelos de ouro tem, fronte de prata)


(Julho 2003)

sexta-feira, maio 04, 2007

Meditação nefelibata olhando o mar

há neste horizonte
que é de um fim de dia junto ao mar
um fio de tormento a derivar
nos meus olhos: no meu inculto monte
de áridos vocábulos
de nostalgia e dor a desviar
do meu ser o concreto e o afim.

sou eu quem faz a ponte
que parte do meu verbo duvidar
para um outro mais ousado esgar
de afirmação jusante: aqueronte
de infernos mais vernáculos.
mas isto não está no mar nem no ar:
existe por demais dentro de mim.