terça-feira, maio 15, 2007

Meditação esforçada sobre um poema barroco

A minha bela ingrata
Cabelos de ouro tem, fronte de prata.
De bronze o coração, de aço o peito

Jerónimo Baía



sempre que leio os poetas barrocos
muito me agrado com seus bons ofícios
à língua portuguesa: artifícios
que brilham de beleza, embora ocos
por vezes. outros poetas (bem poucos)
também souberam criticar os vícios
do excesso de palavra: tais indícios
enunciavam já outros rebocos
da grande construção da poesia.
pois sendo assim que posso eu dizer
hoje num verso que mal te retrata?
dizer que a minha amada em fantasia
também (soubera eu escarnecer)
cabelos de ouro tem, fronte de prata?

e se és assim ingrata quanto bela
será que posso ainda acrescentar
que é de pedra fria o teu olhar?
(ou maldizer a minha triste estrela
por tanto a desejar e por não tê-la?)
pode um poeta hodierno delirar
e em em rimas esforçadas delinear
poemas ofuscantes numa cela?
será mal necessário entender
talvez que a poesia é uma torrente
que não regressa nunca ao mesmo leito
mesmo que eu tenha para tal de ter
(aparte o trocadilho e o parco enfeite)
de bronze o coração, de aço o peito.

(e embora não consiga
dizer de cor a cor
dos versos que desdigo
quando não digo nada
e sempre me persiga
a aura desse amor
eis pois o que dedico
à minha bela ingrata:
cabelos de ouro tem, fronte de prata)


(Julho 2003)

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